Eu comecei quatro diferentes parágrafos antes deste. Todos com assuntos diferentes. Ainda uma série de outros tantos apareceram na minha mente, em fila bem torta e longe de ser uma construção linear. Todos poderiam iniciar um texto de terça. Resolvi começar um quinto sobre a escrita e a leitura.
Meus pais não tiveram a chance de estudar na idade ideal. Eles não concluíram os primeiros anos do Ensino Fundamental (a que eles chamam de Ginásio), mas sempre estimularam os filhos a estudar.
Eu me lembro de ter chego na pré escola alfabetizada. Eu com meus 5 anos sabia ler e treinava a minha escrita. Talvez meu interesse em aprender tenha começado pelo empenho dos meus pais em sentar conosco todas as noites, ensinando a segurar o lápis, a imprimir as primeiras letras no papel de rascunho. Ou quem sabe por conta dos desafios colocados pelas conversas entre os adultos repletas de palavras soletradas na minha frente. Havia ali discursos escondidos na cadência de soletrar de letras. Aprender a juntar as letras era como começar a entender um novo mundo. Com o tempo percebi que alguns deveriam ser palavrões.
Meus pais tinham alguns livros em casa. Meu pai tinha os livros técnicos do curso de torneiro mecânico que ele cursou. Ele era metalúrgico. A minha mãe completava a pequena estante com alguns livros de poesia e com clássicos da literatura brasileira. Meus tios contribuíram muito para a minha pequena biblioteca com alguns livros didáticos, especialmente os de biologia.
Aos poucos as letras se tornaram comuns na minha vida. Elas me ajudavam a desvendar o mundo a minha volta. Todos me fascinavam, os livros didáticos da escola, os poucos gibis a que tinha acesso e as poesias. Os de poesia, esses eram meus preferidos. Elas são tão gostosas de se dizer em voz alta!
Eu aprendi a ler com as poesias. Talvez por conta disso, eu recebi com estranhamento o trecho de um livro do Paul Strathern:
“Começou a ler amplamente, em várias línguas: Karl Marx em Alemão, Dostoievski em russo e poesia em francês, alemão, russo e polonês. Tentou até escrever sua própria poesia, e trabalhou para a revista clandestina Prawda[…]
Felizmente, a Prawda era dedicada à nova religião da ciência, e Maria logo viu a luz. A álgebra ambígua e as formulas banais da poesia foram gradualmente cedendo lugar à sublime poesia da matemática pura e ao romantismo da descoberta científica.” (Strathern, 2000, p. 12).
A Maria (tradução brasileira) é a Marie Skladowska Curie. O autor ao usar o felizmente e a luz da ciência em detrimento a banalidade da poesia opta pela ideia de que as ciências exatas são superiores. Eu, ainda que seja Química e ame minha área de formação, vi na formação anterior de Marie uma superioridade ainda maior. Tudo isso fazia parte da Madame Curie. Ela me pareceu bem mais completa.
Voltando a poesia da minha infância, a sonoridade não bastava. Minha mãe me indagava o que elas queriam dizer. Era assim todos os dias com as coisas novas que eu aprendia. Ela queria saber o que tínhamos aprendido na escola, qual fora o tópico mais legal que aprendi. Esse costume se manteve ao longo dos anos. Ela escutava sobre os artigos que eu lia no doutorado com a mesma atenção das lições iniciais da minha educação escolar, com as devidas pausas e perguntas quando não entendia alguma coisa. Acho que foi ali na cozinha de casa, enquanto minha mãe preparava a refeição, que comecei a me encantar em ouvir e falar sobre ciência.
Quando pequena, demorei um tempo para entender que as palavras escritas que se tornavam progressivamente tão comuns para mim, não eram para todos, mesmo depois de um certo tempo. Eu tinha 8 anos quando um colega da escola me disse que os pais eram analfabetos. Aprendi que aquele an- na frente do alfabeto era um prefixo de negação. Fiquei um bom tempo pensando nisso. Ainda penso. Em todas as negações e em todos aos que foram negados o acesso à formação básica.
Educação escolar, leitura e escrita não deveriam ser privilégios.
De acordo com o IBGE, em 2018, a taxa nacional de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais era de 6,6%, ou seja, são mais de 11 milhões de brasileiros que não sabem ler e escrever ao menos um bilhete. Em alguns Estados do Nordeste no nosso pais, essa taxa é superior a 15%.
O nível rudimentar do analfabetismo funcional, ou seja, em que as pessoas não conseguem fazer inferências a partir do que leram, é de 22% no nosso país, mais de 46 milhões de brasileiros (considerando a população brasileira em 209,5 milhoes de habitantes). Para se ter uma ideia, a população da cidade de São Paulo é estimada em cerca de 12 milhões de pessoas.
Tudo isso me faz refletir sobre a divulgação científica, sobre os textos que escrevo e sobre as conversas que tenho. Me lembro que a beleza das palavras é que elas não se limitam ao escrito, mas estão presentes na oralidade, na linguagem de sinais, na imagem. E a divulgação científica pode ser feita por meio de diferentes mídias.
Ainda assim, as palavras não se desvendam pela simples evocação. Elas passam a fazer sentido quando se entende o que elas representam. Caso contrário, elas se esvaziam. Não, você não vai dizer luz e todos vão entender que há uma dualidade partícula onda envolvida.
Não, não somos deuses. O preço da mortalidade do comunicador é refletir em como a ciência está representada na sociedade, no mundo, e a daí, a partir do seu público, construir enunciações, narrativas.
Para saber mais:
IBGE. (2019) Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua.
Strathern , Paul. Curie e a Radioativdade em 90 minutos. Jorge Zahar