Mesmo morando em uma chácara, a poluição luminosa da Cidade São Paulo só me deixava ver parte do céu. Foi quando pequenininha visitando meus avós, em Itapajé, no interior do Ceará, conheci o céu noturno lindo e repleto de estrelas. Lá, fui apresentada aquela mancha luminosa, esbranquiçada e estonteante a que minha mãe me contou ser a Via Láctea.
Eu achei engraçado aquele nome que lembrava o leite que ia na mamadeira do meu irmão e ria imaginando que algo/alguém poderia ter derramado leite no céu. Eu morava na Galáxia com nome de leite! Isso me pareceu tão divertido.
Minha contemplação era atrapalhada pelo meu medo do coaxar do sapo-boi e o sono que sempre me levavam para o alpendre, onde as pessoas costumavam se reunir à noite para ouvir meu avô contar uma das suas estórias.
Eu me lembro do início de algumas delas entoadas com aquela voz grave com sotaque gostoso de ouvir, mas nunca cheguei a conhecer o fim de uma delas. De manhã, lá estava eu em uma rede dentro de casa.
Foi por meio de uma estória, agora da mitologia, que soube que os gregos começaram com a idéia de leite no céu. Eles contavam que Zeus, o pai dos deuses e chefão no Olimpo, levou Hércules (Herácles), seu filho com uma mortal, para se alimentar do leite de Hera, enquanto ela dormia. Mas a deusa Hera não era a mãe de Hércules e nem sabia das intenções de Zeus. A confusão estava ali prontinha. A deusa acordou assustada e empurrou o semideus do seu seio. Na mitologia, no meio da confusão, algumas gotas do leite de Hera cairam formando um ciclo do leite, ou galaxia kyklos. Mais tarde os romanos emprestaram a ideia dos gregos para o nome da Via Láctea. Sorri de novo pensando que a Galáxia Via Láctea tinha uma ponta de pleonasmo.
Muito conhecimento se acumulou desde os romanos. Novos equipamentos foram desenvolvidos para a observação do céu e séculos depois descobriu-se que aquela mancha branca era na verdade um conjunto de estrelas. Hoje se sabe que a nossa Via Láctea tem aproximadamente 100 bilhões de estrelas. Mas os bilhões não param por aí. Existem bilhões e bilhões de galáxias no universo. Aliás, Bilhões e bilhões foi o primeiro livro que li do Carl Sagan faz poucos anos. Ele começa o livro reclamando da imprecisão do termo, que ele nunca teria dito, mas a expressão com o som gostoso de se falar ficou [e confesso que não me contive e coloquei aqui].
Recentemente, tivemos a noticia do Prêmio Nobel em Física que está relacionado com uma pesquisa sobre a Via Láctea. Dois grupos diferentes de pesquisa em astronomia liderados por Reinhard Genzel e Andrea Ghez desenvolveram novos métodos de análise para os dados obtidos a partir dos maiores telescópios do mundo. Eles estavam mapeando a órbita das estrelas mais brilhantes do centro da nossa galáxia quando encontraram um buraco negro supermassivo, isto é, um objeto invisível, extremamente pesado capaz de atrair um amontoado de estrelas e modificar a suas velocidades. Genzel, Ghez e Roger Penrose foram os laureados com o Prêmio Nobel em Física de 2020.
Há muito mais para ser descoberto.
Na última quinta-feira, dia 3 de Dezembro, The European Space Agency disponibilizou os dados preliminares (EDR3, de Early Data Release 3) coletados pelo Gaia entre 2014 e 2017. Gaia é um acrônimo para Global Astrometric Interferometer for Astrophysics e tem como objetivo principal “catalogar mil milhões [bilhões] de estrelas, mensurando a posição de cada uma e o movimento 200 vezes mais acurado do Hipparcos”, seu predecessor. Gaia está orbitando no Espaço. Isso faz com que ele ganhe precisão ao eliminar os efeitos de desvio das medidas ocasionados por nossa atmosfera, como a refração. Os dados são coletados de estrelas que estão orbitando ao redor do Sol a partir de dois telescópios ópticos presentes no Gaia (ESA). O Gaia também poderá determinar o brilho, temperatura, composição delas no espaço, criando um mapa tridimensional da nossa Galáxia.
Os dados do Gaia, que são muitos, estão sendo analisados por astrônomos que fazem parte de um consórcio, Astronomers from the Gaia Data Processing and Analysis Consortium (DPAC). Os dados preliminares trazem a posição de mais de 1,8 bilhões de estrelas, entre outros dados com informações do anticentro da nossa Galáxia.
Uma coisa bem interessante sobre o projeto, é que os dados são disponibilizados de forma imediata para todos. A ideia do projeto é disseminar os dados para que todos possam usa-los e construir o conhecimento.
Diante dessas pesquisas e conhecimentos gerados eu me vejo como aquela menina de anos atrás e continuo encantada com as estrelas.
Dicas
Quer saber mais sobre o catálogo feito a partir do Gaia? O professor Prof. Ramachrisna Teixeira do IAG-USP deu uma aula aberta sobre o assunto que está disponível no Canal IAG-USP no YouTube.
No CDF-Ciência de Fato do Blogs de Ciência da Unicamp eu e o Alessandro Marins trouxemos um pouco mais sobre o Prêmio Nobel de Física de 2020. Nas próximas semanas o Blog trará mais conteúdo sobre Astronomia. Nos sigam por lá.
Para saber mais
Joseph Campbell. As Máscaras de Deus: Mitologia Ocidental. Palas Athena Editora. 2004
ESA. Gaia overview. Disponível em <http://www.esa.int/Science_Exploration/Space_Science/Gaia/Gaia_overview>.
Paulo Sérgio de Vasconcellos. MITOS GREGOS. Disponível em http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/mitos_gregos.pdf
The Nobel Prize. THE NOBEL PRIZE IN PHYSICS. Disponível em https://www.nobelprize.org/prizes/physics/